Alusões

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Até o final do séc. XIX, a tradição greco-romana, de um lado, e a tradição judaico-cristã, do outro, eram os dois pilares em que se apoiava a formação de qualquer pessoa que passasse pela escola. Estudava-se o Latim e o Grego, e liam-se os autores clássicos - Homero, Ovídio, Cícero e Virgílio. Além disso, todo mundo, fosse ou não religioso, conhecia as principais passagens do Velho e do Novo Testamento. Os personagens da mitologia e as figuras bíblicas podiam então ser mencionadas, porque pertenciam a um fundo comum de conhecimento que era reconhecido em todas as nações do Ocidente.

Essas expressões continuam a ser usadas, mas perderam, para a maioria dos leitores, aquele valor de referência imediata e instantânea que antes possuíam, pois hoje são poucos os que conhecem a literatura clássica ou têm o hábito de ler a Bíblia. Ainda são bem conhecidos o episódio da Arca de Noé, ou da luta de Davi contra Golias, mas certamente nem todos sabem que uma frase sibilina é aquela que pode ser interpretada de várias maneiras, assim chamada por causa da linguagem ambígua e cifrada que as sibilas, sacerdotisas de Apolo, usavam nas suas previsões do futuro. Sem querer substituir a leitura dos bons autores do passado, apresento abaixo algumas dessas expressões e a história que se esconde atrás delas.

A espada de Dâmocles
Dizer que alguém "está sob a espada de Dâmocles" significa que, a qualquer momento, algo de muito ruim pode acontecer com o pobre coitado. O nome vem de um certo Dâmocles, que vivia na corte de Siracusa, no século IV a.C. Como freqüentava o palácio e era amigo do rei, expressava constantemente sua inveja pelas delícias proporcionadas pelo trono. O rei, para mostrar-lhe o preço que se paga pelo poder, ofereceu-lhe um requintado banquete, deixando suspensa sobre a cabeça de Dâmocles uma espada que pendia ameaçadoramente do teto, presa apenas por um único fio delgado. Com isso, o invejoso cortesão entendeu a precariedade do poder real, e a expressão passou a simbolizar "um perigo iminente que paira sobre a vida de alguém". Para quem é soropositivo de HIV, a ameaça de que a AIDS venha a se manifestar é uma verdadeira espada de Dâmocles.

O bode expiatório
Na tradição bíblica, esse bode fazia parte do ritual pelo qual os hebreus expiavam suas culpas diante do Senhor. Todos os anos, no Yon Kippur (o Dia do Perdão), o sacerdote simbolicamente lançava sobre um bode todos os pecados do povo de Israel e o soltava no deserto, a fim de que os castigos e as maldições caíssem longe dos fiéis. Exatamente por isso a expressão hoje designa aquele inocente que é escolhido para levar a culpa do que os outros fizeram. Sempre que há um escândalo financeiro, logo aparece um pobre bode expiatório.

Cair nos braços de Morfeu
A expressão significa "adormecer", e nasce de um pequeno equívoco mitológico: Morfeu era, na verdade, o deus dos sonhos em que apareciam as formas humanas; o deus do sono era seu pai, Hypnos, que dormia eternamente no fundo de uma caverna silenciosa, cercado de canteiros de papoula, a flor de onde se extrai o ópio. A confusão, contudo, ficou consagrada há muitos séculos. Quando o farmacêutico alemão F. W. Setürmer isolou, em 1803, o alcalóide ativo do ópio, chamou-o morphium, numa alusão a Morfeu. Este nome foi em seguida mudado para morfina, recebendo a terminação padrão de outros alcalóides, como a estricnina, a cafeína, a atropina e a cocaína.

O calcanhar de Aquiles
O nome vem de Aquiles, o grande herói grego na Guerra de Tróia. Ele era considerado invulnerável porque, ao nascer, tinha sido mergulhado pela mãe nas águas sagradas do Styx, o rio dos deuses; no entanto, como ela o tinha segurado pelo calcanhar, esta parte não tocou na água, ficando desprotegida. É exatamente nesse ponto que Páris, filho do rei de Tróia, acerta uma flecha envenenada, tornando possível a morte do herói. Usamos a expressão para designar o ponto em que uma pessoa é realmente vulnerável; durante a Copa, alguns cronistas disseram que o calcanhar de Aquiles de Ronaldinho era o joelho, frase que deve ter deixado confuso quem pensou que se tratava apenas de anatomia.

Leito de Procusto
Na mitologia grega, Procusto era um salteador sanguinário que obrigava suas vítimas a deitar sobre um sinistro leito de ferro, do qual nenhuma saía com vida: se elas fossem mais curtas que o leito, estirava-as com cordas e roldanas; se ultrapassassem as medidas, cortava a parte que sobrava. Teseu foi ao seu encalço e matou-o, fazendo-o provar seu próprio remédio. A expressão é usada para qualquer tipo de padrão que seja aplicado à força, sem o menor respeito por diferenças individuais ou circunstâncias especiais. Na história da educação, houve momentos em que a escola se converteu num verdadeiro leito de Procusto, impondo a todos os alunos, indistintamente, o mesmo modelo.

O pomo da discórdia
A lendária Guerra de Tróia começou numa festa dos deuses do Olimpo: Éris, a deusa da discórdia, que naturalmente não tinha sido convidada, resolveu acabar com a alegria reinante e lançou por sobre o muro uma linda maçã, toda de ouro, com a inscrição "à mais bela". Como as três deusas mais poderosas, Hera, Afrodite e Atena, disputavam o troféu, Zeus passou a espinhosa função de julgar para Páris, filho do rei de Tróia. O príncipe concedeu o título a Afrodite em troca do amor de Helena, casada com o rei de Esparta. A rainha fugiu com Páris para Tróia, os gregos marcharam contra os troianos e a famosa maçã passou a ser conhecida como "o pomo da discórdia" - que hoje indica qualquer coisa que leve as pessoas a brigar entre si.

Trabalho de Sísifo
Sísifo, um dos mais astutos personagens da Mitologia Grega, enganou várias vezes o próprio Zeus, o rei dos deuses. Como castigo, foi condenado, quando morreu, a rolar uma pesada pedra até o pico de uma das montanhas mais altas dos infernos. O detalhe torturante é que esta pedra tinha um peso calculado de tal forma que, a poucos metros do cume, faltavam forças a Sísifo e a pedra rolava encosta abaixo, começando tudo outra vez, pela eternidade. A expressão hoje designa qualquer trabalho que pareça interminável; por exemplo, manter o quarto em ordem é um verdadeiro trabalho de Sísifo, pois ele começa a desarrumar-se assim que voltamos as costas.

O fator "inexorável"

Queres saber a pronúncia correta? Só posso te dar a pronúncia aconselhável (ou preferível), porque nem tudo é sólido quando entramos no mundo dos sons. Podes julgar por um simples detalhe: a correta maneira de pronunciar os sons da língua é chamada de ortoepia (do Grego orthos - "correto", e epos - "palavra") - vocábulo cuja pronúncia é controvertida, já que não poucos estudiosos preferem ortoépia. Ou seja: há controvérsia sobre a pronúncia correta da palavra que significa "pronúncia correta". Deu para sentir?

É por esse motivo que procuramos, em dúvidas, ouvir a opinião de autoridades de reconhecida ciência e comprovado bom senso. Três dos principais guias - Aurélio, Celso Pedro Luft e Antenor Nascentes - recomendam que o "X" de inexorável seja pronunciado como /z/, e não como /cs/ ou /cz/, como se pode ouvir às vezes.

A propósito de pronúncia: o pouco lembrado Dicionário da Academia Brasileira de Letras, em quatro volumes, de autoria de Antenor Nascentes, é o único dicionário respeitável que traz, ao lado de cada vocábulo, a pronúncia que o autor sugere, indicada por meio de uma transcrição fonética simplificada.

Por: Profº Cláudio Moreno